domingo, 19 de setembro de 2010


Jaime,Antonio,Joseph e Krause, P.Alegre 1972

O DESPERTAR

Eu tinha quinze anos e usava uma calça que o pé quase não podia entrar de tão justa, alisava os cabelos para ficar parecido com os cantores da época e ter uma franja que os meus cabelos crespos e encaracolados não ajeitavam. Namorava a filha da vizinha e íamos ao cinema assistir a matinê, ver os filmes de John Ford com o John Wayne dando tiros para todos os lados e correndo para salvar a mocinha em perigo, e nós acompanhávamos a trilha sonora batendo os pés no assoalho do velho Cine Danúbio Azul (da pequena cidade da grande P.Alegre), que deixava o lanterninha louco e muitas vezes o projetista interrompia o filme para a gurizada se recompor, então, dávamos uma sonora vaia de assobios. Isto só não acontecia nos filmes do Elvis Presley ou nos melosos filmes italianos do Gianni Morandi, que faziam eu e a namorada com as mãos dadas e apertadas encher os olhos de lágrimas. Ou com o riso solto com os velhos filmes da Atlântida, com Oscarito, Grande Otelo Cyl Farney, Odete Lara, Tônia Carrero, Norma Bengell. Antes do filme, um seriado do Durango Kid que era interrompido com uma cena de perigo para ver no próximo domingo. Para trocar gibis, gostava de ir ao Cine Rey na Volta do Guerino ou no Vitória da Borges.

Festa boa era reunião dançante na casa de alguém, e melhor ainda na casa daquela menina liberal e com pais modernos, embalada com som de Roberto Carlos, Renato e Seus Blue Caps, Beatles era a novidade e com eles, “ She Loves You” yeah, yeah, yeah, traduzido para iê,iê,iê, era o rock brasileiro e suas guitarras elétricas. Com o movimento Hippie, comecei a perder a inocência, meu gosto pela Bossa Nova (que tenho até hoje) sofreu um pequeno baque com o tropicalismo de Gil e Caetano, nunca mais fui o mesmo.

Grudávamos nas antigas televisões Invictus e Admiral para ver o Festival da Música Popular Brasileira, Elis Regina, arrastão, Chico Buarque, Nara Leão e a “Banda”, Os Mutantes, surgia o Clube da Esquina com Milton Nascimento e os irmãos Borges. Eu que já estava seriamente abalado com o Festival de Monterey, Jimi Hendrix Experience e Janis Joplin, pirei nas letras musicais inteligentes, de protesto e questionadoras. Não precisei mais alisar meus cabelos, agora compridos e cacheados junto com uma calça e uma jaqueta Lee (que quando eram lavadas tínhamos que ficar cuidando no varal, senão roubavam) comprada de contrabando no cais do porto de P.alegre do negão Café, usávamos com roupas militares que comprávamos na Boutique Lixo, um depósito na Voluntários da Pátria (depois na Independência) que vinham do Vietnã.

Eu estava realmente integrado com a nova geração, dançando na noite de Porto Alegre e sumindo nos subterrâneos da metrópole. Meu pai começou a ficar preocupado e os mais velhos a falar das danças esquisitas (separados) e do cheiro de maconha nas esquinas. Minha idéia de liberdade foi aguçada com o livro de Kerouac “On The Roads” e completava com o descobrimento de Godard e seu “Acossado”, “A Doce Vida” de Fellini, Stanley Kubrick, Glauber e o cinema novo, Anselmo Duarte ganhava a palma de ouro em Cannes com “O Pagador de Promessas” e em 1969 fomos ao delírio com Woodstock, Credence, The Who, Santana e outros lendários.

Como os comportados ainda eram a grande maioria, sentíamos que éramos uma espécie de privilegiados por entender o que estava acontecendo em nossa volta, o horror da ditadura, a guerra do Vietnã, Bob Dylan, Joan Baez, sabíamos o que Chico Buarque e seus amigos estavam dizendo, o que falava o Boal e o que queria dizer Plinio Marcos e a anarquia do Zé Celso Martinez. Alguns mais velhos eram “os engajados” e chamavam agricultores de camponeses, outros tinham um pé em Miles Davis, Charles Parker e na poesia Beat, eu era muito jovem ainda, tava curtindo o paraíso como dizia Timothy Leary. Quando coloquei um pôster do Che na parede (que tenho até hoje) e comecei a ler Camus, Sartre, Brecht e outras políticas e lutas, pensava mais no trabalho para ter o vil metal (não sou filho de pai rico) do que a subversão. Gostava das ruas de P.Alegre, do Raul Ellwanger, do Festival Sulbrasileiro da Canção (melhor festival Gaucho), “Há, meu Matchu Pitchu ninguém segura este meu delírio” do Hermes Aquino, Mr. Lee Júlio Fürst, depois Almôndegas, Nelson Coelho de Castro, Ney Lisboa, gente da melhor qualidade.

Botei o pé na estrada, praia era Santa Catarina, (onde vivo hoje) gostava de poesias, filosofia e tudo que é Cult (e hoje gosto mais ainda) com uma boa pitada de jazz. Não era mais o menino que gostava de ouvir “Itai Dona da Noite” ou ir no Mataborrão com meu pai. Fiquei muito longe de alguns jovens do meu bairro, mas amei intensamente viver com este pessoal diferenciado, numa época que me tornou diferente para todo o sempre , e sem querer ser saudosista, hoje sento na beira do mar do Rosa ou de Torres e avalio: não acho muito legal este pós-modernismo pit-bull sem muito romantismo, em que o cara já nasce transando e dando socos, talvez por amar demais uma época em que se acreditou tanto na arte como força política no mundo.

Jaime Baghá – Quando a saudade aperta, vou tomar um chimarrão no Brique da Redenção, olhar o velho e o novo e me sentir um pouco em casa.

Um comentário:

Rafael Reinehr disse...

Belíssima crônica, meu novo amigo! Me senti lá, em plenos anos setenta (final dos sessenta...).

Parabéns pelo blog, que é uma peça rara no meio de tanta bobagem que por aí se escreve! Voltarei!