segunda-feira, 27 de outubro de 2014




Dylan, Neil Young e Eric Clapton


Ligue o som!




The Last Waltz

Era uma época em que eu tinha amadurecido um pouco, como jovem “estava por dentro” (como diziam na época). Tinha refinado os gostos e vivia sob o embalo de boas músicas, na MPB, além do pessoal mais conhecido, como Chico, Caetano, Gil e Elis, eu também tinha um pé no Jazz e nos malditos, gostava muito de Jorge Mautner, do Arrigo Barnabé e a banda Sabor de Veneno, do Itamar Assumpção e do Isca de Polícia. Tinha certo cabedal com a cultura e pouca grana, uma mistura de “vagau” com arte. Lia de Gabriel Garcia Márquez a Carlos Castaneda, autores marxistas, revista do Harvey Kurtzman e achava que sacava os filmes do John Cassavetes. 

Era noite de um inverno muito frio em Porto Alegre, sozinho fui ver um filme documentário no Cine ABC, eu desci do ônibus na Praça Rui Barbosa e fui até a Av. Venâncio Aires no bairro Cidade Baixa. O filme começava às 22 horas, era um Avant Premiere, assim chamavam o lançamento de um filme, quando apresentavam ao público antes de começar a passar em outros cinemas da cidade. 

Fui ver The Last Waltz, um show histórico filmado por Martin Scorcese (diretor de obras como Taxi Driver, dentre outros clássicos) e divulgado como despedida final do The Band, ótima banda de rock com componentes multi-instrumentistas, que deu apoio a muitos caras de qualidade da música internacional, entre eles Bob Dylan. Dylan era o cara mais ousado da minha geração, um poeta que cantava os hinos de uma época, de “Blowin In The Wind” a “Like a Rolling Stone”, e muito sons que mudaram o comportamento e influenciou uma geração de jovens de todo o mundo, e ídolos como Jimi Hendrix, Rolling Stones e até os Beatles. Gente de peso, e também ídolos de uma geração como Eric Clapton, Neil Young, Neil Diamond, Joni Mitchel, Von Morrison, Muddy Waters e outros, que também estavam no filme de Scorcese.

Como dizia Dylan, “Não precisa de um homem do tempo para saber para que lado sopra o vento”, e naquela noite o vento frio do inverno de Porto Alegre soprava para o bairro Cidade Baixa,  mais precisamente para o  Cine ABC e todos estes caras estavam lá. Vi todos eles cantarem para mim numa tela gigantesca do cinema. Achava legal o Cine ABC, cinema de gente cabeça, sem pipoca e sem refrigerante, só balinhas azedinhas ou um chocolate Refeição da Neugebauer.

Fiquei extasiado com o pessoal de peso do rock e ver Bob Dylan cantando no cinema, foi o máximo, “o maior barato” para um jovem lá da vila. Sempre busquei resposta além do meu quarteirão e ainda procuro, sem me sucumbir. Na saída, com fome, comi um cachorro quente, que cachorro gostoso, depois encontrei alguns amigos que me convidaram para continuar o embalo na noite, mas não me liguei, “fiquei na minha”, naquela noite, não estava a fim de ficar naqueles papos regados a bebida e white widow. 

Segui a passos pela cidade, num tempo que você podia andar nas noites de P. Alegre, passava da meia noite. Caminhei pela Lima e Silva até o final, dobrando a esquerda era a Rua Fernando Machado, a rua onde morava um amigo (que conhecia uma amiga muito legal), tinha combinado com ele que iria dormir lá depois do cinema. Não me perdi numa festa naquela noite, ainda era muito novo, estava começando a desvendar os subterrâneos, conhecia cada quadra da cidade baixa. Passo a passo, fui me lembrando do filme que tinha assistido e sorria para mim mesmo, olhando as estrelas no céu no inverno de nossa cidade, uma boina na cabeça e uma manta no pescoço, uma calça Lee surrada e extremamente feliz, alegre, meu Porto Alegre. 

Ao meu querido primo Wilmer que deu vida ao texto ao lembrar do filme.
Jaime Baghá


Fotos da época do "The Last Waltz"...

Jaime e Carmem

Maneca, Jaime e Khan - Floripa, 1979

Jaime e Maneca - "Na estrada"

Jaime e amigos: Fernando, Pedrão, Lucinha, Aurinha, Maneca -
 Acampados na serra gaúcha

domingo, 5 de outubro de 2014

Guernica - Pablo Picasso

O que pode a arte num mundo fascista

vivemos numa ferida aberta.
somos os pequenos vermes de deus.
vivemos em guetos que deveriam ser comunidades,
campos de extermínio do corpo e da consciência
que deveriam ser hospitais e escolas.
vivemos em bunkers
que deveriam ser casas, encaixotados antes de morrer
ou admirando gramados amplos com nossas visões estreitas.

a guernica de picasso foi ampliada,
escapou da tela, ganhou o mundo.
moramos dentro de guernica,
e o bombardeio não para.
touros gritam, cavalos enlouquecem, vulcões acordam,
corpos são despedaçados, prédios queimam,
pássaros morrem,
o tempo todo mulheres choram sobre filhos mortos.

o tom geral é cinza,
a noite impera,
violenta.

há sempre um sujeito
que entra pela porta com uma lâmpada na mão
e ilumina a cena.
o que ele segura firme em sua mão é a arte.
eis o papel da luz: iluminar.
deixar ver, não ocultar o monstro.
e o monstro somos nós e nossos nós.

falamos de nazismos e de fascismos
como ficções doutro tempo
só pra esconder
o óbvio de que estamos dentro dele.

nós fizemos e fazemos todo dia esses fascismos.
levantamos muros contra os outros,
fingimos não ver os muros que levantam contra nós.
fingimos não ouvir o carregamento de pedras chegando.
fingimos não ouvir os pedreiros trabalhando, gritando,
e todos os ruídos que vêm de fora.
fingimos, fingimos: não somos poetas.

usamos no braço direito uma estrela,
no esquerdo uma suástica.
e não sabemos.

ferimos mulheres crianças negros índios
cães surdos cegos velhos gays
lésbicas fanhos albinos
e de vez em quando alguém com um sotaque esquisito.

ferimos qualquer signo que nos estranhe,
qualquer signo áspero
que não seja música aos nossos ouvidos.

ferimos o passado e o presente,
ameaçamos o futuro a cada novo dia.

ferimos a possibilidade da liberdade alheia
com nosso direito falso,
nossa falsa filosofia e a pirotecnia falsa
do que deveria ser literatura, cinema, poesia, música.

covardemente maquiamos o monstro,
escondemos o horror, fingimos não haver guernica.

nosso medo granítico não deixa a luz passar.
mas lá está o sujeito com a luz na mão,
ele entra pela porta sem pedir licença,
sem pedir licença ilumina o inferno.

eis a função da luz: revelar. re-velar.
iluminar de novo e de novo, fazer re-ver.
para isso, para nada.
porque mais vale o inútil do fazer
do que o inútil do não-fazer.

arte como instinto puro.
casamento pleno do sublime com o grotesco.
sem cartilhas ou regras.
sem travas, sem papas, sem línguas.

a arte não possui função social.
a função da arte é essencial.
é ser o que só ela pode ser,
a última trincheira.
comunicação entre essências,
comunicação duma nova experiência.

a arte sobrevive à mudança de políticas,
mudanças linguísticas, ideológicas.
quando todas as opiniões passaram
ela permanece.
quando os sonhos absurdos e ridículos do artista já morreram
o que o atravessou permanece vivo.

os poemas nas cavernas.
a capela profana de michelangelo.
os fractais de picasso.
os noturnos iluminados de chopin.
a flauta carbônica de maiakóvski.
o ronco baixo de gregor samsa.
a jangada viva dos mortos de alberto lins caldas.
a terra desolada.
yorick na mão de hamlet.

tudo extremamente humano e revelador e necessário.
consciência trazida à tona,
revelação duma experiência única.

re-ver. re-ter. re-ler.

a função da arte não é social, é essencial.
não comunicar ideologias do momento.
não repetir o senso comum da pobre mídia rica.
não reduplicar memes mentiras memórias.
não assoviar enquanto dilaceram corpos na esquina.
não apagar a chama antes de entrar na sala.
não ajoelhar e ruminar a cantilena junto com a manada.
não acreditar no sentido do cardume.
não concordar com o cardume.
não acreditar que exista o cardume.
não podemos nos dar o luxo de pararmos de criar.
não podemos nos dar o luxo de não iluminar o inferno.

o sincronismo não nos dá esse bônus.
o monocromatismo do cardume é fascista.
o monocromatismo do cardume
é o que desejam os assassinos de rimbaud e de van gogh.
o monocromatismo do cardume é menos desejável que a morte.
deixar ver é a função da arte.

ensaiar um ensaio sobre a cegueira.
estudar a anatomia da máquina tribal.
olhar para trás enquanto se caminha
e ver a paisagem se desfazendo sem o nosso olhar.

somos máquinas de significação.
mas o que significamos
deve ter o selo da indignação.
não perder o tom da indignação, o dom da indignação.
não se perder na pirotecnia e nos conchavos do cardume.
não se perder
nas políticas misticismos modismos
e outras quinquilharias invasoras.

a função da arte é essencial.
ressignificar.
dar ao outro a possibilidade de ver.
permitir ver.
inventar linguagens.
fazer poesia depois de auschwitz.
a poesia só é possível depois de auschwitz.
fazer poesia porque auschwitz.

não repetir, não submeter ou submeter-se,
não ruminar a ladainha, não dizer amém.
inventar linguagens,
plantar sementes de linguagem,
inventar línguas.
iluminar o inferno,
o grotesco, o injusto, o totalitário,
o monocromatismo do cardume.

tocar enquanto o prédio desaba.
tocar enquanto afunda o barco.
todo barco afunda.
todo prédio desaba.
tocar enquanto há dedos.
iluminar enquanto há olhos.

não perder a capacidade de se indignar
e ver as dilacerações do mundo.
para isso, para nada.
porque sim.
porque é belo
e é grotesco.

porque guernica cresceu e devorou o mundo.
porque talvez o mundo sempre tenha sido guernica.
porque talvez o mundo ainda não tenha sido, nascido, aflorado.

o artista com o fogo roubado dos deuses.
o artista com a loucura necessária.
o artista com a chama
já lhe tocando os dedos os olhos a língua.
o artista como aquele que revela a cena.
não o maquiador do monstro.
não o camareiro dos idiotas de plantão.
não o subalterno lambedor de botas.
não o funcionário da burrice prepotente.
não o afiador de facas do torturador.
não o estilista do capeta.
não o tocador de realejo da praça de guerra.
não a manicure do carrasco.
não o advogado da perfídia.
não o coçador de costas oficial do filho da puta do momento.

o artista sem momento.
o artista sem patrão e sem limites.
o artista simplesmente
como o sujeito que entra de repente e ilumina a cena e revela a máquina
monstruosa triturando tudo.
porque sim. por que não?

construímos guetos
e muros de medo em volta de guetos.
construímos campos de extermínio do corpo e da consciência
como se não houvesse dor suficiente.
habitamos bunkers e afiamos facas
sonhando com a carne alheia,
admirando gramados amplos com nossas visões estreitas.
vivemos numa ferida aberta.
somos os pequenos vermes de deus.
somos deus – esse pequeno verme.
mas lá vem de novo o sujeito com a luz na mão.
ele entra sem pedir licença
e ilumina a cena.
 Carlos Moreira


Pan de Muertos - Octavio Ocampo

O MAL DA HUMANIDADE
A humanidade não muda assim como na época de Michel de Montaigne (1533/1592), filósofo francês que analisou as instituições, as opiniões e os costumes, nossa sociedade continua viciosa e falsa, o homem continua uma peste e com a grande pretensão de que sabe alguma coisa.
A sociedade continua embebida em falsidade, obcecada por poder, representações e aparências, as pessoas tratam de esconder o que verdadeiramente são, atuam como se fossem atores, seu pequeno mundinho é um grande teatro. “Há em nós mais maldade do que felicidade, mais tolice que malícia, mais vazio do que bondade, mais vileza do que miséria”. Ou se adere aos viciados da intriga ou os odeia, porque na verdade tudo é trapaça, mentira e traição.
Prefiro ficar num canto sozinho, afastar-me, não participar de nada, fugir das convenções, das políticas e dos amigos deste meio, enfim, sequestrar a mim mesmo, encurralando-me num recanto como fiz ao vir para o interior. Mas, mesmo no mais pacato interior é impossível fugir das falsas fisionomias e das máscaras, eu ainda tenho que conviver com pessoas aos quais eu me sinto constrangido a conviver, pois me envergonha viver desta forma. 
Com o passar do tempo e da idade vou fugindo deste bando torpe, mas ao mesmo tempo não me deixo ser um analfabeto político como falava Bertolt Brecht, porque “da ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, a criminalidade, a miséria e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio”.  
Jaime Baghá
“Ho! que formosa aparência tem a falsidade!” William Shakespeare


Martins de Barros

FUTURO

Não tenho tempo
Nem paciência
Não vou ao templo
Só a ciência
Para abafar
Entender
Afogar
Meu tormento
Nestas estradas
Tão curtas
De vida absurda
Que o comum
Inculca
Em saber
Em ter
Em querer
Para mais nenhuma
Maledicência
Profetizar
Nada encontrar
Caminhar
Até onde esta orgia
Acabar.  

Pensando na maravilha da ignorância – Jaime Baghá